Um rastro de destruição da proteção social brasileira que será sentido ao longo de anos. Esse é o legado que Jair Bolsonaro (ex-PSL) e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, vão deixar para o país se a Medida Provisória que institui o programa de transferência de renda em substituição ao Bolsa Familia for aprovada pelo Congresso Nacional.
A análise é da ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma Rousseff, a economista Tereza Campello.
De acordo com ela, com a MP, o presidente acaba com os princípios básicos do programa que há 20 anos funciona “muito bem, obrigada” para colocar no lugar um emaranhado de regras que não têm um fio condutor que permita sua eficiência. Vai ser a maior exclusão social da história, dizem especialistas da área.
Entre os principais pontos negativos da proposta, Tereza Campello destaca que a MP, que já de antemão extingue o Bolsa Família, não deixa claro quantos serão os beneficiários do novo programa, qual será o valor exato – quanto receberá cada família.
“Essa é a questão que todos querem saber, inclusive grande parcela da população em situação de vulnerabilidade. O que vemos é um programa que eles dizem ser teórico, conceitual – um blá blá blá que não responde os principais anseios da população”, critica a ex-ministra.
Ao anunciar a medida, o governo anunciou também que os valores ainda serão definidos. De acordo com o próprio governo, isso ocorre até o fim de setembro e deve ficar em cerca de R$ 280, mas não há uma definição. A julgar pelo vai e vem das declarações de Bolsonaro, tudo se pode esperar, inclusive nada.
Outra grande preocupação é o caráter de destruição da rede de assistência que fez o Bolsa Família ser um programa eficiente, premiado, elogiado e reconhecido por diversos países, inclusive por instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) como exemplo de inclusão social.
Um dos mecanismos dessa rede é o Cadastro Único, que não será mais utilizado para incluir famílias vulneráveis no programa. “Tinha um sistema de assistência social por trás do Bolsa Família, organizando seu funcionamento que era simples e eficiente”, afirma Tereza Campello.
Além disso, ela aponta outras características essenciais que foram ‘solapadas’ com a mudança.
“O programa não foi pactuado com municípios, não foi negociado com o Sistema Único de Assistência Social [SUAS], portanto é provável que se repita a confusão das filas do aplicativo que foi feito para o Auxílio Emergencial”, explica a ex-ministra
O SUAS é um sistema de assistência que conhece a população pobre, sabe onde ela está e que viabilizada o ingresso de famílias no programa. O que o governo propõe agora é o cadastro por aplicativo de celular, a exemplo do auxílio emergencial o que, segundo a ex-ministra, vai repetir a confusão e problemas enfrentados desde o início do benefício.
Confuso e cheio de penduricalhos. A chance de funcionar é baixa
Bolsa turbinado?
O governo apresentou o programa batendo na tecla de que os valores serão maiores, que seria ‘turbinado”, mas a conta não bate. O Auxílio Brasil, além de acabar com o Bolsa Família, também substitui o Auxílio Emergencial. Quem recebia o bolsa, recebeu auxílio também. Agora será apenas um benefício e de valor menor.
“Se o valor for o que estão dizendo – em torno de 300 – isso é o que as famílias já recebiam de auxílio, na melhor das hipóteses. Outro ponto é que se pegarmos o Bolsa Família no governo Dilma e atualizarmos pelo valor da inflação dos alimentos, já chegaríamos neste mesmo valor”, diz Tereza.
Na época, um diferencial importante é que a taxa de desemprego no Brasil era menor e o país estava fora do mapa da fome, tanto por causa do Bolsa Família quanto pela valorização do salário mínimo também criada nos governos do PT e exterminadas por Bolsonaro.
“Querem chamar de ‘bolsa turbinado’ um valor parecido que tinha na época, só que em um país com a maior taxa de desemprego da história e com milhões de pessoas passando fome. Tem que ser muito superior [o valor] para dar conta de comprar alimentos muito mais caros” diz a economista rebatendo a falácia do governo e se referindo a disparada da inflação, que atingiu 8,99% nos últimos doze meses terminados em julho.
As famílias não precisam do benefício para complementar renda e sim para comprar comida. O valor tem que ser suficiente para que elas tenham dignidade, pelo menos o acesso a uma cesta básica
O mais que é menos
O governo se gaba ao afirmar que o benefício irá aumentar o número de beneficiários. A estimativa de alcance do Bolsa-Família, hoje, é de cerca de 14,6 milhões de pessoas. O governo fala em ampliar para 17 milhões com o novo programa, mas sem, novamente, apresentar dados concretos. Sendo assim, milhões de pessoas que recebem hoje o auxílio-emergencial (são 39 milhões) estariam excluídas. Tereza afirma que será a maior exclusão social da história – cerca de 22 milhões de pessoas.
O velho discurso do vagabundo
Um dos penduricalhos incluídos no programa é o chamado Auxílio Inclusão Produtiva Urbana, um bônus para beneficiários do Auxílio Brasil que comprovarem vínculo de emprego formal, ou seja que conseguirem emprego em época de desempreto recorde.
Trata-se na verdade, de um estímulo para que os beneficiários procurem emprego e não dependam futuramente do auxílio. Na avaliação de Tereza Campello, com isso, o governo dá a entender que a população é pobre porque não trabalha, porque é preguiçosa.
“Não só é um preconceito como não é verdade. Todos os dados mostram que quem é beneficiário trabalha – muito – e mesmo assim não consegue receber valor digno suficiente para manter a família em condições”, diz.
Hoje o Brasil tem cerca de 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados. Empregos não existem e a situação é fruto da falta de política econômica de geração de emprego e desenvolvimento no governo Bolsonaro. “São mais de 20 mi que estão assim por que não querem trabalhar?”, questiona Tereza.
Para ela, não se pode achar que programas sociais vão resolver problemas econômicos e não é correto jogar a culpa da incompetência do governo nas costas do bolsa-família.
Creche
As mulheres, mais atingidas pela crise econômica e o desemprego serão duplamente punidas com o programa. A MP prevê um bônus para aquelas que estejam empregadas – para manterem seus filhos na creche. O bônus seria repassado, inclusive, a entidades particulares.
No entanto, o governo ignora a realidade das mulheres desempregadas que não têm com quem deixar seus filhos para poder procurar emprego.
Futuro imediato
De olho nas eleições de 2022 e na queda de sua popularidade, Jair Bolsonaro lançou o programa às pressas e sem levar em consideração dados reais sobre a desigualdade brasileira. Sem sequer saber ao certo como financiará o programa.
Na segunda-feira (9), junto com a publicação da MP do Auxílio Brasil, o governo enviou à Câmara a PEC dos Precatórios que prevê o parcelamento de dívidas oriundas de ações perdidas pela União na Justiça. Com o dinheiro das dívidas não pagas a aposentados e trabalhadores, mesmo com determinação da Justiça, ele quer resolver o problema da falta de planejamento para aumentar o valor do Auxílio Brasil.
Para a ex-ministra Tereza Campello, desta forma, o governo comprova o caráter eleitoreiro do programa. “Está dizendo que vamos dar uma pedalada fiscal nos precatórios para poder pagar o Auxílio Brasil, mas o dinheiro dos precatórios é finito e precisamos garantir que um programa dessa natureza esteja previsto em orçamento e não em valores que são desconhecidos e limitados”, ela afirma.
Para ela, é importante a população estar atenta porque o que o Brasil faz hoje é trocar o certo pelo duvidoso por conta do período eleitoral.
Não é à toa, diz Tereza Campelo, que Bolsonaro, que teve três anos para organizar uma proposta, apresenta, somente agora, às vésperas da eleição, “um programa mal feito e que coloca em risco o maior e melhor programa do mundo sem que se saiba o que ele representa”.
Fonte: CUT